domingo, 3 de junho de 2018

UMBANDA

  Até hoje, a família de Zélio Fernandino de Moraes não sabe explicar ao certo o problema de saúde que ele teve aos 17 anos. Só sabe dizer que, por vários dias, o estudante que sonhava seguir carreira na Marinha não conseguia sequer levantar da cama.

Zélio Fernandino de Moraes em reunião na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade
Zélio Fernandino de Moraes em reunião na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade
Foto: Acervo TENSP / BBCBrasil.com
Preocupada, sua família, uma das mais tradicionais de São Gonçalo, a 25 km do Rio, o levou a inúmeros médicos. Nem o tio do rapaz, o psiquiatra Epaminondas de Moraes, quis arriscar um diagnóstico. O máximo que uma "rezadeira" conseguiu foi aconselhá-lo a desenvolver sua mediunidade. Um dia, Zélio acordou bem disposto e aparentemente curado. Na dúvida, um amigo sugeriu uma visita à Federação Espírita do Estado do Rio, em Niterói. Era o dia 15 de novembro de 1908.
Chegando lá, o médium José de Souza, que dirigia a sessão espírita kardecista, pediu que Zélio sentasse à mesa. A certa altura, espíritos de caboclos (ancestrais indígenas brasileiros) e pretos velhos (escravos africanos) começaram a se manifestar. Na mesma hora, o dirigente, alegando que eram espíritos "atrasados", pediu que se retirassem.
Logo, Zélio foi incorporado por uma entidade que saiu em defesa das demais: "Se não houvesse ali espaço para espíritos de negros e índios cumprirem sua missão, ele (espírito) fundaria, já no dia seguinte, um novo culto na casa de Zélio".
Quando perguntaram seu nome, a entidade respondeu: "Caboclo das Sete Encruzilhadas". E, em seguida, completou: "Para mim, nunca haverá caminhos fechados".
"Há várias maneiras de definir a umbanda. Espiritismo abrasileirado é apenas uma delas. A religião valorizou o papel de caboclos e pretos velhos como entidades espirituais", explica o antropólogo Emerson Giumbelli, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Com os que sabem mais, aprenderemos. Aos que sabem menos, ensinaremos. Mas, a ninguém viraremos as costas", teria dito, na ocasião, Zélio de Moraes. Por outro lado, proibiu o jogo de búzios, o uso de atabaques e o sacrifício de animais.
"Um dos princípios básicos da umbanda é jamais fazer o mal. Isso inclui querer algo que pertença à outra pessoa, interferir no livre-arbítrio de terceiros ou cobrar para fazer consultas ou atendimentos", exemplifica Leonardo Cunha, bisneto de Zélio.

Leonardo Cunha dos Santos (bisneto do Zélio) e Lygia Maria Marinho da Cunha (neta de Zélio) são dirigentes espirituais da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade
Leonardo Cunha dos Santos (bisneto do Zélio) e Lygia Maria Marinho da Cunha (neta de Zélio) são dirigentes espirituais da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade
Foto: Pedro Paulo Figueiredo / BBCBrasil.com
' Psicólogo do pobre'
Se o dia 15 de novembro entrou para a história como o Dia Nacional da Umbanda, o 16 de novembro ficou marcado pela fundação da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. A casa situada no número 30 da rua Floriano Peixoto, em Neves, São Gonçalo, já nem existe mais. Foi demolida em 2011. Hoje, funciona em Cachoeiras de Macacu, a 97 km da capital, e, pelo menos uma vez por mês, atende uma média de 120 pessoas.
"A umbanda pratica a caridade e não cobra um centavo de ninguém. O preto velho é o psicólogo do pobre", afirma Fátima Damas, presidente da Congregação Espírita Umbandista do Brasil.
No Brasil, a liberdade de credo é assegurada desde a primeira Constituição da República, de 1891. Mesmo assim, a intolerância religiosa nunca deixou de existir. O Código Penal de 1890, vigente no ano em que a umbanda foi fundada, criminalizava a prática dos cultos afros.
Por essa razão, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade foi alvo constante de batidas policiais. "Meu avô enfrentou preconceito até mesmo dentro de casa. Sua família era predominantemente católica", relata a neta, Lygia Maria Cunha.
Zélio de Moraes dirigiu a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade até 1946, quando passou o comando para as filhas Zélia e Zilméa, ambas já falecidas. Quando ele morreu, em 3 de outubro de 1975, Lygia, sua neta, tinha 38 anos, e Leonardo, seu bisneto, 11.
Atual dirigente espiritual da Piedade, como a família se refere à tenda espírita, Lygia conta que seu avô não sabia nadar e até de piscina tinha medo. No entanto, quando incorporava a entidade Orixá Malet, era capaz de entrar no mar e arriscar umas braçadas por entre ondas fortíssimas.
"Da areia, acompanhávamos tudo, apavorados. Já imaginou se a entidade resolvesse deixá-lo antes de ele estar são e salvo na praia? Felizmente, isso nunca aconteceu", relata.
Adeptos
O atual presidente da Piedade, Leonardo Cunha, explica que o nome umbanda só veio muito depois de sua fundação. Originalmente, o nome do culto era alahbanda - em homenagem à entidade Orixá Malet, que fora muçulmano em sua encarnação anterior. De origem árabe, Alá ou Alah significa Deus. Já "banda", palavra coloquial do idioma português do século 15, é sinônimo de lado. "Umbanda pode ser entendida como Ao lado de Deus ou Com Deus ao lado", explica.
Segundo dados do Censo de 2010, o número de umbandistas hoje no Brasil, 110 anos depois de sua fundação, chega a 432 mil. Uma queda de 20% em relação ao Censo de 1991.
Para Fátima Damas, da Congregação Espírita Umbandista do Brasil, esses números não correspondem à realidade. "Muitos umbandistas não admitem publicamente que são umbandistas. Por medo ou vergonha, preferem dizer que são católicos", justifica.
Os casos de intolerância religiosa, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI), aumentaram, só no Rio de Janeiro, 56% em relação ao primeiro trimestre de 2017. São 25 denúncias entre janeiro e abril contra 16 no mesmo período do ano passado.
Em alguns casos, vândalos depredam os terreiros, destroem imagens e fazem pichações: "Fora macumbeiros!", "Não queremos macumba aqui!" e "Só Jesus expulsa demônio das pessoas!". Em outros, pais, mães, filhos e filhas de santo são impedidos de vestir branco, usar guias e até de entoar cânticos.

'Muita religião para pouco devoto'

Dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos (MDH), revelam que os ataques a terreiros de umbanda e candomblé, entre outras, não estão restritos ao Rio. Em 2011, o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) atendeu 15 casos. Em 2015, foram 556. Ano passado, saltou para 759.
"Há uma teologia que se dedica a ganhar territórios 'para Cristo' e a enfrentar 'inimigos'. Alguns identificam esses inimigos entre os praticantes de religiões com elementos espíritas e entendem a metáfora de 'guerra espiritual' no sentido literal da palavra", analisa Giumbelli, da UFRGS.
Para o sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo (USP), a intolerância religiosa nasce do preconceito racial e agrega que "há muita religião para pouco devoto. Por essas e outras, algumas igrejas neopentecostais chegam a impor metas de conversão de umbandistas aos seus pastores".
Em quase 110 anos de fundação, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade sofreu um único caso de vandalismo. Foi nos anos 1980 quando um invasor, durante um surto psicótico, teria quebrado alguns santos e ateado fogo no terreiro. As chamas não se alastraram.
Para os dias 15 e 16 de novembro, Luciano avisa que não vai ter festa. No máximo, bolo com champanhe. "Na umbanda, espírito não desce para dançar, desce para trabalhar. Nossa vida só tem sentido quando nos colocamos à disposição de Deus para servir ao próximo", afirma.

domingo, 29 de janeiro de 2017

UMA ENTREVISTA COM UMA SOBRINHA-NETA DO DR. BEZERRA DE MENEZES

D.a Fausta Bezerra Silva reside num belo casarão da rua General Rodrigues n.° 24, na Estação do Rocha, no Estado da Guanabara. Ê professora aposentada pela ESCOLA PROFISSIONAL PREFEITO BENTO RIBEIRO e casada com o Sr. Zeferíno Silva, alto funcionário aposentado da Câmara Federal. Recebeu-nos irmãmente. Colocou-nos à vontade. O ambiente do seu Lar tem a quietude de um Templo e infunde respeito e emoção a quem lhe penetra o interior. Vive o clima superior, porque seus autores oram e vigiam e vivem, na prática, os Ensinos de Nosso Senhor Jesus Cristo, certamente inspirados nos exemplos do saudoso Presidente da CASA DE ISMAEL. O Sr. Zeferino Silva é um velhinho simpático e inteligente mas agnóstico. Ri, sem maldade, da nossa convicção de Espirita. Ainda não CAIU EM SI, como acontecera conosco e tem acontecido com quantos, péla dor ou pelos fatos, científica- mente comprovados, CAEM EM SI no clima do arrependimento e, vestindo-se de humildade, tudo traduzem das coisas maravilhosas e santas da Verdade, que Deus lhes reserva. D.a Fausta é uma simpática velhinha refletindo mansuetude e bondade nos olhos e nos gestos. Além do mais, vivendo os seus setenta e quatro anos e aparentando ter apenas 60, possui um Espírito sensível e os dons da vidência e audiência. E isto desde criança, motivo por que o Dr. Bezerra de Menezes lhe dedicara particular estima e a apelidara de FAUSTEZA, — coisa que ninguém o fizera jamais. Conversamos, por meia hora, assunto variado. Dialogamos com o Sr. Zeferino. Procuramos mostrar-lhe, véladamente, as Vidas Sucessivas justificando as desigualdades em todos os ângulos de nossa vida. Espírito delicado e culto, percebeu, incontinente, nossa convicção como fruto de estudo e sofrimento e calou-se. Deixou a palavra livre com sua digna esposa. Ouvimos, então, D.a Fausta falar por duas horas seguidas. Ficamos encantado e emocionado com o que nos revelou. Mentalmente, íamos guardando seus informes, seus casos, suas observações, seus preciosos esclarecimentos com relação à vida exemplificativa ao seu bondoso tio e avô. Soubemos que o Dr. Adolfo Bezerra de Menezes nasceu no RIACHO DO SANGUE, no Estado do Ceará, na madrugada de 29 de agosto de 1831. Foram seus pais: o Coronel Antônio Bezerra de Menezes, que era Capitão das Antigas Milícias e Tenente-Coronel da Guarda Nacional, fazendeiro de grandes recursos financeiros, e D.° Fabiana de Jesus Maria Bezerra. Eram verdadeiras almas gêmeas. Dois grandes corações, caritativos por índole. Traziam da Espiritualidade expressivos lastros de Bondade e Renúncia, Humildade e Fé. O ambiente era de emoção. D.° Fausta sente e também sentimos, entre nós, a presença do formoso Espírito de Bezerra de Menezes. Ficamos alguns minutos silenciosos, sentindo intraduzível bem-estar. Ele, com sua presença, aplaudia nossa visita e aquilo que estávamos colhendode sua vida e de seus venerandos pais. D.a Fausta levanta-se. Vai ao interior de sua casa e, depois de breves momentos, volta com alguns livros e anotações. Senta-se e fala-nos: Aqui estão registados vários Casos Lindos, constantes do livro LOUCURA SOB NOVO PRISMA, onde ele estuda, como poucos, as obsessões ocasionadas pelos Espíritos e os meios evangélicos para as melhorar ou solucioná-las; A CASA ASSOMBRADA, romance de caráter espírita, escrito num estilo familiar e com um enredo simples e cativante, descrevendo belas verdades dos nossos sertões nordestinos de há muitos anos; O VALIOSO AUTÓGRAFO, como o publicou a revista O REFORMADOR e, depois, editado pela Livraria da Federação Espirita Brasileira com o título — UMA CARTA DE BEZERRA DE MENEZES, cujo original lhe foi enviado pelo saudoso Poeta Juvenal Galeno. Trata-se, de fato, de valioso documento, verdadeira Tese Doutrinária, em que, confrontando o Cristianismo e o Catolicismo à luz do Espiritismo, nos demonstra sua vasta cultura. Dirigiu-a a seu irmão Germano. Aqui estão, ainda, os apontamentos tirados dos trabalhos do Dr. Canuto de Abreu, publicados na Revista “METAPSlQUICA”, de São Paulo, e alguns outros baseados no romance — BEZERRA DE MENEZES, “o Médico dos pobres”, do Sr. F. Acquaronne. — Não conheço ainda seu livro (referia-se a nós). Mas sei que registou Lindos Casos e todos autênticos, porque lhe foram contados pelo culto Sr. Manuel Quintão, que os ouviu de Pedro Richard, que conviveu, mtimamente, com Bezerra e dele herdou as qualidades de verdadeiro cristão. Aqui nesta sala, principalmente, nos anos de 1898 a 1900, ouvi belíssimos epsódios aã vida de meu querido tio e avô contados pelo meu pai, Dr. Teófilo Rufino Bezerra de Menezes e pelos queridos amigos, Drs. João Lacerda e Maia Lacerda. Meu pai era sobrinho e meu avô, Dr. José Joaquim Bezerra de Menezes, era irmão do Dr. Bezerra, motivo por que sou dele sobrinha e neta. Guardei, pois, bem na memória e no coração aqueles emocionantes epsódios e, depois, quando já moça, procurei me inteirar de sua veracidade e, conseguindo, comecei a votar uma profunda e sincera admiração ao Espírito caridoso do MÉDICO DOS POBRES. Certamente sentindo minha sincera admiração, começou a aparecer-me, a falar-me, possibilitando-me muitas graçasi Somente o chamo quando o problema é muito grave. O nosso Áureo, aqui presente, foi um beneficiado de suas graças. De uma feita, apareceu-me aflito, dizendo-me estar vivendo momentos sérios. Seus problemas eram muitos, morais e financeiros. À proporção que me revelava alguns, senti a presença do Dr. Bezerra, que me dizia: ele não deve mudar, se o fizer piorará sua situação espiritual... Áureo ficou admirado, pois ainda não me havia falado do seu desejo de mudarde casa. Mostrou-se satisfeito, tanto mais quanto me visitara para obter um conselho sobre o que deveria fazer, se ficar ou sair. A situação estava complicada. Mas ele havia conseguido dar ao seu lar um clima de defesa depois de muitos anos de luta. E agora... Finalmente, passado meses, soube que havia mudado e sua situação espiritual e mesmo econômica piorou muito... Ultimamente, vem procurando contornar a situação e vai conseguindo-a, em parte... Nosso caro irmão Áureo, num riso melancólico, confirma, com um, sinal de cabeça, o que diz D.a Fausta. A querida sobrinha-neta de Bezerra continua seus preciosos informes. Nosso Áureo possui outros Lindos Casos, mas apenas mais outro lhe contarei, para não tomar grande e enfadonha minha entrevista. Sua irmã, Maria Pessoa Tavares, apareceu-lhe, de uma feita, de maneira diferente, falando-lhe coisas esquisitas... Foi dada como louca. Médicos foram chamados. Remédios lhe foram receitados. E tudo em vão. Por intermédio de meu genro, Professor Hugo Leite, Áureo me procurou. Vinha com a fisionomia abatida pelas vigílias realizadas junto à irmã, que, dia a dia, piorava. Pedia, com humudaae e fé, vara eu consultar o Espírito do Dr. Bezerra. Seria uma cariaade imensa que lhe fazia e também à sua irmã e aos seus familiares. Ficamos os três em concentração, depois de havermos feito a Prece. E o Espírito de meu caro tio e avô veio e disse: — Não está louca como vocês pensam. Tem algo espiritual adoecendo-a. A entidade não sabe o mal que lhe faz. Vamos, por misericórdia da Virgem, tentar doutriná-la com amor. E vocês tratem do fígado de nossa irmã Maria, porque é isto que está agravando mais a sua suposta LOUCURA. Daqui há um mês, se Deus quiser, estará boa. E de fato, submeteu-se a um tratamento especializado no fígado e, em seguida, começou a melhorar. Um mês depois estava, totalmente, normalizada, como está até hoje, com surpresa de seus médicos assistentes... Aproveitamos uma pausa na palestração utilíssima de D.a Fausta e lhe perguntamos sobre a veracidade dos Lindos Casos que nos contaram, principalmente, Manuel Quintão e Dr. Guil- ton e aqui registrados, páginas adiante. E, além de confirmá- -los, à proporção que deles se inteirava, disse-nos: — O Caso, por exemplo, do anel de grau, ele o deu, como o Sr. relata, a um senhor, ralado de sofrimento, à porta da Federação. No consultório da FARMÁCIA HOMEOPÁTICA CORDEIRO, o que ele deu a uma senhora, mãe, com uma filha doente, ambos pobres e famintos, foi um envelope com o dinheiro que o bondoso Cordeiro coletara, na véspera, para dá-lo a D.a Cândida, a segunda e também virtuosa esposa do Dr. Bezerra. Essa coleta era resultante das consultas pagas pelos clientes que se achavam em condições de o fazer. Cada consulta custava apenas cinco mil réis...Depois de nos contar outros casos lindos de suas anotações, historiou-nos a vida do caroável Seareiro Espírita, através de sua infância trabalhosa, quando para o Rio viera ma- tricular-se na Faculdade de Medicina, justamente quando seus caros pais já se achavam com parcos recursos financeiros. Rememora-nos a renúncia de Bezerra pelos bens materiais, sua paixão pelo dever de servir sem ser servido, de ser útil, de amar a seu próximo, sua preocupação de aliviar-lhe as dores, solucionar-lhe os problemas, dando de si sem pensar em si. E cita-nos, a esmo, o seguinte caso para colaborar com seu asserto: — Quando era Presidente da Companhia de Carris Urbanos, deixava, certo dia, o consultório dessa Companhia, na rua Sete de Setembro. Eram seis horas da tarde. Era sempre o último a sair e somente o fazia depois de assistir ao fecha* mento das portas. Ia descer a via pública, em direção ao Largo São Francisco, onde iria tomar o bonde para sua casa, quando encontrou um velho conhecido, que o aborda todo trêmulo e envergonhado: — Que é isso, meu caro? Que sucedeu com você? O irmão em sofrimento, com a fisionomia refletindo grande mágoa, conta-lhe que acabara de perder o filho e que, desempregado e sem recursos, vinha precisamente para lhe falar... Bezerra não lhe pede outras explicações. Chamo-o para um canto e dá-lhe a carteira e sem procurar saber quanto a mesma guardava... O irmão, emocionado e em pranto, agradece-lhe e parte. Já instalado no bonde, mete Bezerra os dedos nos bolsos e verifica que está sem um níquel... Salta, calmamente, e se dirige a uma casa comercial conhecida sua, ali por perto, onde pede tresentos réis para a passagem. .. Assim era Bezerra de Menezes, continuou D.a Fausta. Concluíra seu Curso de Medicina em 1856, aos 25 anos de idade. Dois anos depois, casou-se por amor, com D.a Maria Cândida de Lacerda. Deste casamento nasceram-lhe dois filhos, um dos quais morreu muito moço e quando frequentava a Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1863, cinco anos depois, ficou viúvo. E, dentro do seu desalento, deixava cair do seu coração torturado essas palavras: “As glórias mundanas, que eu havia conquistado, mais por ELA do que por mim, tomaram-se-me aborrecidas, senão mesmo odiosas.. " Em 1864, um ano depois, reeleito Vereador, casara-se em segundas núpcias, com D.a Cândida Augusta Lacerda Machado, irmã materna de sua primeira mulher e de quem teve cinco filhos: Hilda, Maria, Evangélina, Octavio, apelidado de o BARÃO e Francisco, desencarnado, no ano passado, e que possui um filho de nome Adolfo, servindo no corpo consular da Suíça. Todos os seus filhos estão desencarnados. O Octavio, o BARÃO, é justamente aquele com o qual o senhor se encontrou em Miguel Pereira, como me contou e relata em seu livro.O Dr. Bezerra viveu aqui perto de nós, ali na rua Vinte e Quatro de Maio, esquina aà rua, hoje, Filgueiras Uma. Mais adiante está a Farmácia HOMEOPÁTICA FILGUEIRAS LIMA, que no seu tempo se chamava CORDEIRO. No lugar de sua casa, estão hoje a Padaria Iolanda e o prédio dos Correios e Telégrafos. Chegava da cidade, por volta das 14 horas, e ia, ali, atender aos seus inúmeros clientes, na maioria pobres, que nada lhe davam senão a estima e a bênção das Preces. O mesmo havia feito na parte da manhã no seu consultório da rua Primeiro de Março. Muitas vezes, era chamado para atender aos pobres do morro, na maioria mulheres em estado de gestação. A todos dava o remédio da sua bondade exteriorizada nos abraços, no olhar e nos conselhos. Jamais me esquecerei de sua voz e do seu olhar. Quando falava e olhava, emocionava. Em tudo punha algo do coração formoso. Tive esta graça, qual a de merecer muitos afagos de suas mãos e de seus olhos verdes e refletindo a candura das crianças. Quando desencarnou, contava eu doze anos de idade. No dia 10 de abril de 1900, às vésperas de seu desencarne, pedi à minha mãe para me levar à sua casa. Sabia-o gravemente enfermo. Aqui e pelos morros havia um clima ae tristeza. Todos sentíamos que íamos perder o nosso grande Amigo, o querido Médico dos pobres, o Anjo encarnado da caridade, um dos raros discípulos ae Jesus, quando o Espiritismo codificado contava seus 43 anos de consolações. Ainda me lembro, emocionada. Penetrei em seu quarto ornado de uma cama e outros móveis simples e senteime numa cadeira junto à sua cabeceira. OUiou-me e sorriu. Não falava. Somente, minutos antes de seu desencarne, voltou-lhe a voz e mesmo assim, como desejara, para orar à Virgem, de Quem foi devoto sincero e humilde e agradecer-Lhe os socorros, a assistência, o amor imenso de MSe querida. Aquela cadeira tomou-se histórica. Desejei guardá-la e não o consegui. Senti muito. Nela sentaram-se infinidades de pessoas, ricas e pobres, sãs e doentes, visitando-o nos seus últimos momentos. Diante da serenidade, do testemunho que nos deu de resignação na sua enfermidade, congestão cerebral agravada com a anasarca, todos choravam, evangelizados com aquela página de luz e dor, de humildade e fé. O ambiente que possibilitou, mesmo naquela conjuntura, foi de emoção e cura, até para ãj p|jg doentes, do corpo e da alma, a procuravam no leito da agonia. E saíam, dali, melhorados. Aquela cadeira registou prantos e milagres, vibrações sinceras e piedosos agradecimentos. No dia seguinte, às 11 horas e meia da manhã, como um justo, entregou sua alma ao Criador. Seu enterro foi uma apoteose. Gente dos morros, da cidade e dos subúrbios, homens e mulheres, levaramlhe o corpo, a pé, daqui até ao cemitério São Francisco Xavier, no Caju. Está enterrado logo na entrada, ao lado direito da Capela. Há sempre flores no seu túmulo. Flores aos corações agradecidos ao Apóstolo da Bondade nas terras do Brasil! • o D.a Fausta terminou de falar. Um silêncio se fez. E a música do pranto, doce porque saudoso, enchia o ambiente de algo diferente. Um bem-estar imenso sentíamos todos. Levantamos. Beijamos, respeitosa e agradecidamente, as mãos da veneranda sobrinha-neta do querido Kardec brasileiro. Em seguida, abraçamos seu digno esposo, Sr. Zeferino Silva, também agradecida e fraternalmente. Cumprimentamos sua prendada filha Otília e acarinhamos sua netinha Maria Helena. Despedimo-nos do prezado irmão Áureo, desejando-lhe que Jesus lhe pagasse em bênção o bem que nos proporcionou. E saíamos trazendo flores no coração, flores do coração do Apóstolo brasileiro. Cá fora, a tarde caía aos poucos. Um sol adolescente sumia no horizonte. Eram, justamente, 18 horas; era a Hora do Ângelus. Geraldo de Aquino, pela Rádio Copacabana, dizia para os céus do Brasil a Prece da AVE-MARIA! Ajoelhamos o coração e entramos na onda feliz da Hora Sagrada e gratulatória Àquela que é a Mãe das mães e a Quem Bezerra de Menezes sempre se dirigiu e se dirige, como somente ele sabia e sabe orar, na linguagem do coração e do pranto, a favor de todos nós, seus irmãos em provas remissivas, na glória do BOM COMBATE, com Jesus e por Jesus, em busca do Amor único de Deus, Pai e Criador! Rio, 9 de agosto de 1962.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Masturbação á luz do Espiritismo


Pelo Espírito Eugênia por meio da mediunidade de Benjamim Teixeira 

Pergunta – Eugênia, seria abusivo perguntar sobre masturbação?

Resposta – Claro que não. A forma de me perguntar já revela a necessidade de se ventilar a temática. Tudo deve ser falado, sob a perspectiva da Espiritualidade, principalmente o que é foco de tabu, porque, então, os automatismos neuróticos e destrutivos, bem como as fixações culturais e sociais, agem mais livremente a prejuízo de comunidades e indivíduos.

Pergunta – No passado, Eugênia, tratava-se a masturbação como pecado ou como desequilíbrio que até poderia causar distúrbios mentais e físicos. A medicina (auxiliada pela psicologia e pela sexologia) eliminou os fundamentos de tais crendices populares (que tiveram muito apoio de gente instruída, em tempos idos), mas, no meio espírita, ainda se considera a masturbação como vampirismo ou desvio de função das energias sexuais, um desperdício, qual se todo ato masturbatório indicasse uma queda em tentação. Poderia nos falar algo sobre estas considerações?

Resposta – Sim. É gritantemente necessário que o postulado básico de acompanhar a ciência seja lembrado entre aqueles que desejam, sinceramente, desposar o Espiritismo como filosofia de vida. Apegar-se a velhos conceitos, por tradição, por medo de enfrentar o novo ou por receio de ser plenamente responsável pelos próprios atos, é de tal modo descompassado com a modernidade, que nos eximimos de expender mais comentários a respeito. Importante lembrar que médiuns acabam filtrando, inconscientemente, o pensamento das entidades que se manifestam por seu corpo mental, de modo que refrações sutis e graves podem se dar (e se dão sempre, em algum nível). Eis por que a vigilância deve ser acentuada, sobremaneira quando condicionamentos culturais e convenções muito cristalizadas estão envolvidos.

O que tem dito a ciência sobre o assunto? Que a masturbação é algo natural e até desejável para o indivíduo adulto; e que, mesmo entre aqueles que já têm a vida afetiva disciplinada nos corredores da educação conjugal, é compreensível aconteça o fenômeno do onanismo (para os dois gêneros), que se revela mesmo imperioso, amiúde, quando os ritmos sexuais dos parceiros não se alinham, a fim de que um não incomode o outro na satisfação de suas necessidades de fundo psicofisiológico, nem alguém se frustre na quota de libido que lhe não seja possível imediatamente canalizar para atividades não-sexuais, sem gerar recalques indesejáveis.

Seja na tenra idade, seja em idade avançada, para solteiros ou casados, hétero ou homossexuais, o fenômeno masturbatório pode ser comparado à ida ao banheiro para a excreção dos detritos alimentares. Há abusos, sem dúvida, como os há em tudo na existência humana. Os ritmos sexuais podem ser exacerbados, na compulsão, ainda que se não tenha parceiro para a prática. Cada caso é um caso, e, somente com profundo autoconhecimento, a criatura descobre o sistema apropriado ao seu modo de ser, em função do bem-estar geral, da produtividade, da criatividade e do sentimento de equilíbrio íntimo, que constituem alguns dos resultados da vida sexual resolvida.

Quanto ao vampirismo, pode acontecer também na vida afetiva a dois, sempre que os desajustes da perversão e da promiscuidade invoquem, para a alcova do casal, presenças extrafísicas de baixo calão vibratório, pelo próprio diapasão de desequilíbrio em que se expressam em seu momento de intimidade.

Pergunta – Que bom, Eugênia! Creio que estas suas colocações esclarecedoras vão ajudar muitas pessoas. Entretanto, você aludiu a “perversão”, e este conceito me parece muito amplo e difuso, pelo mesmo motivo de os preconceitos adentrarem este departamento valorativo. Temos muita dificuldade em aceitar e conviver com nosso lado animal, e muitos são os que têm vergonha e não se soltam em funções elementares de sua própria fisiologia, tudo tendo como sinal de depravação, primitivismo e imoralidade. O que você quis dizer por “perversão”? Digo, porque, inclusive, na temática “masturbação”, está em jogo, normalmente, o fator “fantasia”, que pode incluir itens que não sejam desejados também na relação concretizada a dois – estou certo?

Resposta – O tema é muito complexo, e, sem dúvida, não o esgotaremos nesta nossa primeira fala a respeito. Por outro lado, não somos autorizados por Nossos Maiores, ainda, a discorrer abertamente sobre o assunto, porque mentes menos amadurecidas, levianas, despreparadas para nos ouvir, poderiam fazer mau uso de nossas afirmações. O que podemos dizer é que tudo que lese física, emocional ou moralmente alguém pode ser enquadrado no capítulo “perversão”, ao passo que tudo quanto promova o bem-estar biopsíquico, o crescimento psicológico e a boa relação entre as criaturas não pode ser considerado como distúrbio moral ou patologia psíquica.

O quesito “fantasia” é ainda mais intrincado, porque, freqüentemente, melhor que se liberem certos conteúdos indesejados (e ainda não de todo domesticáveis) da psique, por meio das ferramentas imagéticas, do que fazê-los colapsarem no próprio comportamento, em surtos que se chamam, em psicologia junguiana, de “possessão pela sombra” (*). Os princípios de civilização, entretanto, devem sempre reger tais processos mentais, na promoção da educação e da melhoria progressiva dos indivíduos, dos mais ínfimos aos maiores gestos, dos mais secretos aos públicos. A gerência de tais impulsos – que, como disse, não podem, em sua totalidade, ser de pronto sublimados – corre por conta da responsabilidade de cada um, em função do próprio e do bem comum.

Pergunta – Algo mais desejaria dizer, por ora?

Resposta – Que se procure, em tudo, o ponto de vista do bom senso, do equilíbrio, da visão de conjunto, e dificilmente se incorrerá em erros graves de conduta, seja consigo mesmo, seja nas relações interpessoais.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Vivo como quero, ou como querem?


Embora o homem venha conquistando ao longo dos séculos, um avanço tecnológico excepcional, nada parece ser suficiente para acalmar seu coração, e ele segue sua jornada vivenciando conflitos íntimos terríveis.
O homem é capaz de bombardear o núcleo do átomo.
Mas não logra implodir o próprio orgulho.
O homem com a ajuda de equipamentos modernos é capaz de mergulhar a grandes profundidades no oceano.
Não obstante, não implementa o grande mergulho em si mesmo, e não passa de ilustre desconhecido de si próprio.
O homem lança sondas espaciais de encontro aos cometas, com o desejo de estudar a constituição íntima da matéria, visando descobrir a origem do universo.
Todavia, tem enormes dificuldades em abraçar seu semelhante.
Somos criaturas paradoxais, desejamos conquistar o mundo, mas somos incapazes de realizar as grandes conquistas afetivas, que certamente nos levariam a experimentar a paz.
No campo afetivo, temos mais facilidade em aceitarmos a opinião dos outros, do que a dos nossos familiares.
Com os outros a paciência, com a família a contenda.
Com estranhos a educação, com a família a irritabilidade.
A vida está difícil, ninguém dúvida das grandes transformações pelas quais a humanidade passa.
Precisamos reavaliar as nossas atitudes, é fundamental que iniciemos o mergulho intransferível e inadiável em nosso ser.
Não podemos continuar vivendo a vida, como reféns dos fatos que acontecem a nossa volta.
Viver a vida através dos fatos gerados pelos outros, é viver de forma alienada com relação a si mesmo.
Nossa vida deve ser determinada pelos acontecimentos gerados a partir de nossas escolhas e decisões.
Somos os construtores de nosso destino, estamos construindo a nossa vida? Ou os outros é que determinam nossa forma de viver?
Urge que nos auto conheçamos.
Como estou reagindo diante desse ou daquele acontecimento?
Minhas opiniões são minhas mesmo, baseadas em minha capacidade de pensar? Ou eu sempre opino de acordo com os critérios alheios?
Minhas respostas aos fatos que acontecem, são determinadas pela emoção, ou pela razão?
Sou mais instintivo, ou racional?
Buscar o equilíbrio entre esses aspectos comportamentais nos facultará, uma melhor qualidade de vida.
Não adianta conquistar o espaço, sem antes se auto conhecer.
Pessoas há que passam pela vida sem viver, pois transitam pelo mundo, como reféns das escolhas alheias.
Afinal, eu escolho a vida que quero ter, ou os outros escolhem como devo viver?

Adeilson Salles  

terça-feira, 16 de agosto de 2016

O passe ao longo dos séculos


A transfusão de energias fisiopsíquicas, o passe ou a imposição de mãos, vem sendo aplicada ao longo de milênios para aliviar, confortar, consolar e curar. Os testemunhos mais impressionantes e inigualáveis foram os de Jesus quando curou doentes, cegos e leprosos há mais de dois mil anos.

Antes do Cristo, o Velho Testamento registra em Deuteronômio (34:9):

Ora, Josué, filho de Num, estava cheio do espírito de sabedoria, porque Moisés tinha imposto as suas mãos sobre ele. De modo que os filhos de Israel lhe obedeceram e fizeram o que o Senhor tinha ordenado a Moisés.

No Novo Testamento, dentre os inúmeros fatos relatados, ressaltamos Mateus (8:1 a 3):

Depois que desceu do monte, muitas turbas o seguiram. Eis que um leproso, aproximando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, se quiseres, podes purificar-me.

E Jesus estendendo a mão, tocou-o, dizendo: Quero; seja purificado! E imediatamente sua lepra foi purificada.

Na Idade Média, Paracelso – Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, (1493-1541) – médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista suíço-alemão, já difundia o poder e os benefícios do magnetismo. Mais tarde, Franz Anton Mesmer (1733-1815) destacou-se pelos estudos, divulgação e aplicação do magnetismo animal. Seus ensinos passaram à posteridade com o nome de mesmerismo.

No período contemporâneo, após 1879, Joseph Banks Rhine (1895-1980), parapsicólogo estadunidense, demonstrou com seus estudos e experiências acadêmicas que a mente pode agir sobre a matéria  modificando-a e, inclusive, produzindo efeitos curativos.

No entanto, a Doutrina Espírita, o Evangelho de volta pela segunda vez, desde sua codificação, em 1857, estuda, explica e utiliza os fluidos magnético-espirituais como instrumento de auxílio espiritual, esclarecendo que o processo de cura envolve ações mais complexas, algumas relacionadas à lei de causa e efeito e outras à capacidade do enfermo em se beneficiar desses fluidos. Ensina, também, que a doença é sempre o reflexo de certas ações cometidas pelo Espírito nas inúmeras reencarnações e esclarece, ainda, que as enfermidades deixarão de existir quando o Espírito estiver curado.

Desse modo, instrui-nos Emmanuel:

Consagra-te à própria cura, mas não esqueças a pregação do reino divino aos teus órgãos. Eles são vivos e educáveis.

Sem que teu pensamento se purifique e sem que a tua vontade comande o barco do organismo para o bem, a intervenção dos remédios humanos não passará de medida em trânsito para a inutilidade.1

REFERÊNCIA:

1XAVIER, Francisco C. Segue-me. Pelo Espírito Emmanuel. Editora O CLARIM. cap. A cura própria.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Religião e religiosidade


No caleidoscópio do comportamento humano há, quase sempre, uma grande preocupação por mais parecer do que ser, dando origem aos homens-espelhos, aqueles que, não ten­do identidade própria, refletem os modismos, as imposições, as opiniões alheias. Eles se tornam o que agrada às pessoas com quem convivem, o ambiente que no seu comportamento neurótico se instala. Adota-se uma fórmula religiosa sem que se viva de forma equânime dentro dos cânones da religião. É a experiência da religião sem religiosidade, da aparência so­cial sem o correspondente emocional que trabalha em favor da auto-realização, O conceito de Deus se perde na complexidade das fórmulas vazias do culto externo, e a manifesta­ção da fé íntima desaparece diante das expressões ruidosas, destituídas dos componentes espirituais da meditação, da re­flexão, da entrega. Disso resulta uma vida esvaziada de espe­rança, sem convicção de profundidade, sem madureza espiri­tual.

A religião se destina ao conforto moral e à preservação dos valores espirituais do homem, demitizando a morte e abrindo-lhe as portas aparentemente indevassáveis à percep­ção humana.

Desvelar os segredos da vida de ultratumba, demonstrar-lhe o prosseguimento das aspirações e valores humanos, ora noutra dimensão dentro da mesma realidade da vida, é a finalidade precípua da religião. Ao invés da proibi­ção castradora e do dogmatismo irracional, agressivo à liber­dade de pensamento e de opção, a religião deve favorecer a investigação em torno dos fundamentos existenciais, das ori­gens do ser e do destino humano, ao lado dos equipamentos da ciência, igualmente interessada em aprofundar as sondas das pesquisas sobre o mundo, o homem e a vida.

A fim de que esse objetivo seja alcançado, faz-se indis­pensável a coragem de romper com a tradição — rebelar-se contra a mãe religião — libertando-se das fórmulas, para en­contrar a forma da mais perfeita identificação com a própria consciência geradora de paz. Tornar-se autêntico é uma deci­são definidora que precede a resolução de crescer para dar-se. O desafio consiste na coragem da análise de conteúdo da religião, assim como da lógica, da racionalidade das suas te­ses e propostas. Somente, desta forma, haverá um relaciona­mento criativo entre o crente e a fé, a religiosidade emocio­nal e a religião. Essa busca preserva a liberdade íntima do homem perante a vida, facultando-lhe um incessante cresci­mento, que lhe dará a capacidade para distinguir o em que acredita e por que em tal crê, sustentando as próprias forças na imensa satisfação dos seus descobrimentos e nas possibi­lidades que lhe surgem de ampliar essas conquistas.

Já não se torna, então, importante a religião, formal e cir­cunspecta, fechada e sombria, mas a religiosidade interior que aproxima o indivíduo de Deus em toda a Sua plenitude: no homem, no animal, no vegetal, em a natureza, nas formas viventes ou não, através de um inter-relacionamento integra­dor que o plenifica e o liberta da ansiedade, da solidão, do medo. As suas aspirações não se fazem atormentadoras; não mais surge a solidão como abandono e desamor, e dilui-se o medo ante uma religiosidade que impregna a vida com espe­rança, alegria e fé. O germe divino cresce no interior do ho­mem e expande-se, permitindo que se compreenda o concei­to paulino, que ele já não vivia, “mas o Cristo” nele vivia.

A personalidade conflitante no jogo dos interesses da so­ciedade cede lugar à individualidade eterna e tranqüila, não mais em disputa primária de ambições e sim em realizações nas quais se movimenta. Os outros camuflam a sua realidade e vivem conforme os padrões, às vezes detestados, que lhes são apresentados ou impostos pela sua sociedade. O grupo social, porém, rejeita-os, por sabê-los inautênticos, no entan­to os aplaude, porque eles não incomodam os seus membros, fazendo-os mesmistas, iguais, despersonalizados, desestru­turados. Por falta de uma consciência objetiva — conhecimento dos seus valores pessoais, controle das várias funções do seu organismo físico e emocional, definição positiva de atitudes perante a vida —, não têm a coragem ética de ser autênticos, padecendo conflitos a respeito do senso de responsabilidade e de liberdade, característico do amadurecimento, que se po­derá denominar como uma virtude de longo curso. Não se trata da coragem de arrostar conseqüências pela própria te­meridade, mas do valor para enfrentar-se a si mesmo, geran­do um relacionamento saudável com as demais pessoas, repetindo com entusiasmo a experiência maisucedida, sem ata­duras de remorso ou lamentação pelo fracasso. E saber reti­rar do insucesso os resultados positivos, que se podem trans­formar em alavancas para futuros empreendimentos, nos quais a decisão de insistir e realizar assumem altos níveis éticos, que se tornam desafios no curso do processo evolutivo.

Para que o ânimo robusto possa conduzir às lutas exterio­res, faz-se necessária a autoconquista, que torna o indivíduo justo, equilibrado, sem a característica ansiedade neurótica, reveladora do medo do futuro, da solidão, das dificuldades que surgem.

É preciso que o homem se arrisque, se aventure, mesmo que esta decisão o faça ansioso quanto ao seu desempenho, aos resultados. Ninguém pode superar a ansiedade natural, que faz parte da realidade humana, desde que não extrapole os limites, passando a conflito neurótico.

Por atavismo ancestral o homem nasce vinculado a uma crença religiosa, cujas raízes se fixam no comportamento dos primitivos habitantes da Terra. Do medo decorrente das for­ças desorganizadas das eras primeiras da vida, surgiram as diferentes formas de apaziguar a fúria dos seus responsáveis, mediante os cultos que se transformariam em religiões com as suas variadas cerimônias, cada vez mais complexas e so­fisticadas. Das manifestações primárias com sacrifícios hu­manos, até as expressões metafísicas, toda uma herança psi­cológica e sociológica se transferiu através das gerações, pro­duzindo um natural sentimento religioso que permanece em a natureza humana.

Ao lado disso, considerando-se a origem espiritual do in­divíduo e a Força Criadora do Universo, nele permanece o germe de religiosidade aguardando campo fecundo para de­sabrochar.

Expressa-se, esse conteúdo intelecto-moral, em forma de culto à arte, à ciência, à filosofia, à religião, numa busca de afirmação-integração da sua na Consciência Cósmica. A for­ça primitiva e criadora, nele existente como uma fagulha, possui o potencial de uma estrela que se expandirá com as possibilidades que lhe sejam facultadas. Bem direcionada, sua luz vencerá toda a sombra e se transformará na energia vitalizadora para o crescimento dos seus valores intrínsecos, no desdobramento da sua fatalidade, que são a vitória sobre si mesmo, a relativa perfeição que ainda não tem capacidade de apreender.

Na execução do programa religioso, a maioria das pesso­as age por convencionalismo e conveniência, sem a coragem de assumir as suas convicções, receosas da rejeição do gru­po.

Adotam fórmulas do agrado geral, que foram úteis em determinados períodos do processo histórico e evolutivo da sociedade e, não obstante descubram novas expressões de fé e consolação, receiam ser consideradas alienadas, caso assu­mam as propostas novas que lhes parecem corretas, mas não usuais, e sim de profundidade.

Afirmou um monge medieval que todo aquele que vive morrendo, quando morre não morre”, porque o desapego, o despojar das paixões em cada morrer diário, liberta-o, desde já, até que, quando lhe advém a morte, ele se encontra perfei­tamente livre, portanto, não morto, equivalente a vivo.

A religiosidade é uma conquista que ultrapassa a adoção de uma religião; uma realização interior lúcida, que indepen­de do formalismo, mas que apenas se consegue através da coragem de o homem emergir da rotina e encontrar a própria identidade.