sexta-feira, 29 de julho de 2016

Religião e religiosidade


No caleidoscópio do comportamento humano há, quase sempre, uma grande preocupação por mais parecer do que ser, dando origem aos homens-espelhos, aqueles que, não ten­do identidade própria, refletem os modismos, as imposições, as opiniões alheias. Eles se tornam o que agrada às pessoas com quem convivem, o ambiente que no seu comportamento neurótico se instala. Adota-se uma fórmula religiosa sem que se viva de forma equânime dentro dos cânones da religião. É a experiência da religião sem religiosidade, da aparência so­cial sem o correspondente emocional que trabalha em favor da auto-realização, O conceito de Deus se perde na complexidade das fórmulas vazias do culto externo, e a manifesta­ção da fé íntima desaparece diante das expressões ruidosas, destituídas dos componentes espirituais da meditação, da re­flexão, da entrega. Disso resulta uma vida esvaziada de espe­rança, sem convicção de profundidade, sem madureza espiri­tual.

A religião se destina ao conforto moral e à preservação dos valores espirituais do homem, demitizando a morte e abrindo-lhe as portas aparentemente indevassáveis à percep­ção humana.

Desvelar os segredos da vida de ultratumba, demonstrar-lhe o prosseguimento das aspirações e valores humanos, ora noutra dimensão dentro da mesma realidade da vida, é a finalidade precípua da religião. Ao invés da proibi­ção castradora e do dogmatismo irracional, agressivo à liber­dade de pensamento e de opção, a religião deve favorecer a investigação em torno dos fundamentos existenciais, das ori­gens do ser e do destino humano, ao lado dos equipamentos da ciência, igualmente interessada em aprofundar as sondas das pesquisas sobre o mundo, o homem e a vida.

A fim de que esse objetivo seja alcançado, faz-se indis­pensável a coragem de romper com a tradição — rebelar-se contra a mãe religião — libertando-se das fórmulas, para en­contrar a forma da mais perfeita identificação com a própria consciência geradora de paz. Tornar-se autêntico é uma deci­são definidora que precede a resolução de crescer para dar-se. O desafio consiste na coragem da análise de conteúdo da religião, assim como da lógica, da racionalidade das suas te­ses e propostas. Somente, desta forma, haverá um relaciona­mento criativo entre o crente e a fé, a religiosidade emocio­nal e a religião. Essa busca preserva a liberdade íntima do homem perante a vida, facultando-lhe um incessante cresci­mento, que lhe dará a capacidade para distinguir o em que acredita e por que em tal crê, sustentando as próprias forças na imensa satisfação dos seus descobrimentos e nas possibi­lidades que lhe surgem de ampliar essas conquistas.

Já não se torna, então, importante a religião, formal e cir­cunspecta, fechada e sombria, mas a religiosidade interior que aproxima o indivíduo de Deus em toda a Sua plenitude: no homem, no animal, no vegetal, em a natureza, nas formas viventes ou não, através de um inter-relacionamento integra­dor que o plenifica e o liberta da ansiedade, da solidão, do medo. As suas aspirações não se fazem atormentadoras; não mais surge a solidão como abandono e desamor, e dilui-se o medo ante uma religiosidade que impregna a vida com espe­rança, alegria e fé. O germe divino cresce no interior do ho­mem e expande-se, permitindo que se compreenda o concei­to paulino, que ele já não vivia, “mas o Cristo” nele vivia.

A personalidade conflitante no jogo dos interesses da so­ciedade cede lugar à individualidade eterna e tranqüila, não mais em disputa primária de ambições e sim em realizações nas quais se movimenta. Os outros camuflam a sua realidade e vivem conforme os padrões, às vezes detestados, que lhes são apresentados ou impostos pela sua sociedade. O grupo social, porém, rejeita-os, por sabê-los inautênticos, no entan­to os aplaude, porque eles não incomodam os seus membros, fazendo-os mesmistas, iguais, despersonalizados, desestru­turados. Por falta de uma consciência objetiva — conhecimento dos seus valores pessoais, controle das várias funções do seu organismo físico e emocional, definição positiva de atitudes perante a vida —, não têm a coragem ética de ser autênticos, padecendo conflitos a respeito do senso de responsabilidade e de liberdade, característico do amadurecimento, que se po­derá denominar como uma virtude de longo curso. Não se trata da coragem de arrostar conseqüências pela própria te­meridade, mas do valor para enfrentar-se a si mesmo, geran­do um relacionamento saudável com as demais pessoas, repetindo com entusiasmo a experiência maisucedida, sem ata­duras de remorso ou lamentação pelo fracasso. E saber reti­rar do insucesso os resultados positivos, que se podem trans­formar em alavancas para futuros empreendimentos, nos quais a decisão de insistir e realizar assumem altos níveis éticos, que se tornam desafios no curso do processo evolutivo.

Para que o ânimo robusto possa conduzir às lutas exterio­res, faz-se necessária a autoconquista, que torna o indivíduo justo, equilibrado, sem a característica ansiedade neurótica, reveladora do medo do futuro, da solidão, das dificuldades que surgem.

É preciso que o homem se arrisque, se aventure, mesmo que esta decisão o faça ansioso quanto ao seu desempenho, aos resultados. Ninguém pode superar a ansiedade natural, que faz parte da realidade humana, desde que não extrapole os limites, passando a conflito neurótico.

Por atavismo ancestral o homem nasce vinculado a uma crença religiosa, cujas raízes se fixam no comportamento dos primitivos habitantes da Terra. Do medo decorrente das for­ças desorganizadas das eras primeiras da vida, surgiram as diferentes formas de apaziguar a fúria dos seus responsáveis, mediante os cultos que se transformariam em religiões com as suas variadas cerimônias, cada vez mais complexas e so­fisticadas. Das manifestações primárias com sacrifícios hu­manos, até as expressões metafísicas, toda uma herança psi­cológica e sociológica se transferiu através das gerações, pro­duzindo um natural sentimento religioso que permanece em a natureza humana.

Ao lado disso, considerando-se a origem espiritual do in­divíduo e a Força Criadora do Universo, nele permanece o germe de religiosidade aguardando campo fecundo para de­sabrochar.

Expressa-se, esse conteúdo intelecto-moral, em forma de culto à arte, à ciência, à filosofia, à religião, numa busca de afirmação-integração da sua na Consciência Cósmica. A for­ça primitiva e criadora, nele existente como uma fagulha, possui o potencial de uma estrela que se expandirá com as possibilidades que lhe sejam facultadas. Bem direcionada, sua luz vencerá toda a sombra e se transformará na energia vitalizadora para o crescimento dos seus valores intrínsecos, no desdobramento da sua fatalidade, que são a vitória sobre si mesmo, a relativa perfeição que ainda não tem capacidade de apreender.

Na execução do programa religioso, a maioria das pesso­as age por convencionalismo e conveniência, sem a coragem de assumir as suas convicções, receosas da rejeição do gru­po.

Adotam fórmulas do agrado geral, que foram úteis em determinados períodos do processo histórico e evolutivo da sociedade e, não obstante descubram novas expressões de fé e consolação, receiam ser consideradas alienadas, caso assu­mam as propostas novas que lhes parecem corretas, mas não usuais, e sim de profundidade.

Afirmou um monge medieval que todo aquele que vive morrendo, quando morre não morre”, porque o desapego, o despojar das paixões em cada morrer diário, liberta-o, desde já, até que, quando lhe advém a morte, ele se encontra perfei­tamente livre, portanto, não morto, equivalente a vivo.

A religiosidade é uma conquista que ultrapassa a adoção de uma religião; uma realização interior lúcida, que indepen­de do formalismo, mas que apenas se consegue através da coragem de o homem emergir da rotina e encontrar a própria identidade.